sexta-feira, 25 de março de 2011

Parece cocaína, mas é só tristeza

O fato era admirável. O consumo de si mesmo, a eterna busca por uma cura, o desejo fugaz de se ver completo. Em vão. Pobre misantropia era aquela que subia nas veias tirando aquela vida vazia que o alimentava todos os dias. Vida vã, como as do século XXI. Vidas televisivas, vidas flácidas, vidas homofóbicas. Vidas de fobia, vidas de acre e agridoce, vidas amargas. Essa misantropia e esse autismo opcional não fazem de alguém uma pedra no meio do caminho. Essas vidas desprezíveis de oblação não religiosa, de suspiros banais e roupas que ardem os olhos não agradam a minha acidez espiritual.

Os venenos já não são mais tão lentos, as drogas são rápidas, os cigarros são mais curtos, as conversas mais chatas, os olhos mais escuros, os beijos mais superficiais, os gestos são macabros e irreais. A tecnologia engoliu o homem, e ele se agrada por isso. Os fantasmas dentro de cada um andam vencendo, os desejos e as entregas estão mais clichês e a criação perdeu o DNA. Tudo é copiado, tudo é mal feito, tudo é uma nota de dinheiro, na cor que quiser, no idioma que quiser. Os amigos são aos milhões, os discípulos escolhem seus mestres na sarjeta e o Clássico se tornou algo empoeirado como um relógio de pêndulo quebrado.

Imobilidade. Blasfêmias. Mentiras fáceis. Amor de aluguel. Cafés com vodka.
James Dean está morto. Ninguém mais lê James Joyce. Beatles é alternative. Hippie é moda. Números são sentimentos. Marilyn Monroe é uma diva adolescente clichê. Cigarro é status. Preto é gótico. Coco Chanel é vovó de calças. Ninguém mais gosta de Victor Hugo. Beethoven toca no caminhão de gás. Revoltas juvenis são presentes apenas em livros de História. Hitler se matou e os soviéticos não querem tomar o mundo. Se você for a São Francisco não encontrará pessoas com flores no cabelo. Che é ideologia, Fidel é um velhote. Os martírios ficaram sem graça e os Van Goghs sem cor. Da Vinci apodrece no sóton junto com Françis Bacon, Manet e Degas.
Vidas vazias.
E há tempos são os jovens que adoecem.

terça-feira, 22 de março de 2011

É inevitável não ter uma forma de ferir a sociedade qual ela me fere. Faces de papel, faces de demônios, de hipocrisia tenho potes cheios em casa. São só as minhas costas que os demônios gostam de arranhar?

Last.

Há um vaso de flores na minha mesa, uma xícara de café vazia apenas com resquícios endurecidos desse bendito líquido negro. O vento frio mexe nas cortinas trazendo com ele um fio de saudade que se tece no ar por vontade própria. Eu posso jurar que ouvi seu sussurro, a sua voz perturbadora que adoça meus ouvidos como se nada no mundo pudesse me prejudicar. É remédio.

Na noite fria de um sábado cru, eu busco por uma inspiração. Um cigarro poderia ajudar com todo seu encanto blasé, mas nem isso eu confio mais. Parei depois do seu pedido, agora só recebo a mortalidade vinda de você. Quem precisa de nicotina quanto temos um ao outro?

Lembro-me que já vi rosas assim. Viena de 1890? Eu com o corset desatado, você com os suspensórios caídos, jogando cartas e falando de política? O panfleto molhado da ópera estava pendurado em um varal que você tinha dentro da própria sala de estar daquele apartamento minúsculo. Então o que restava das roupas ficou no chão em uma pilha molhada com cheiro de chuva de cidade grande. O que sobrou da noite nem o céu viu, apenas as gotinhas que ficaram no vidro da janela que dava para o muro de um orfanato, as pétalas das rosas vermelhas e algo além, porque sanidade já não tínhamos mais. Na manhã seguinte eu deixei o vaso de rosas com um bilhete escrito com pressa, antes mesmo de você acordar: Se deixei as flores, é porque voltarei. E de fato. Não havia espaço para aquela beleza na casa familiar tirânica em que vivia. Um último laço no espartilho, calço as botas e molho seus lábios secos com os meus e então vou embora.

Ah, devaneios da vida passada que criei em minha mente. Mas a sensação de que te conheço antes de conhecer a mim mesma me faz pensar que o mundo é bem mais relativo do que Einstein pensava, e bem mais recíproco do que Goethe esperava.

Guardei o cheiro daquela rosa como guardei seu cheiro em mim, no pulso lerdo do meu coração de tecido furado. Fiquei em seguida observando a chuva, como a escritora boba que sou, como a mulher imperfeita com imaginação demais que mora em mim com uma coroa de lírios negros nos cabelos. Uma gota de chuva pingou no meu meu nariz. Era a mesma gota que estava na janela aquele dia em Viena?